Das verdades difíceis de engolir quando me debrucei com mais dedicação sobre o Antigo Testamento, essa foi uma das mais duras: José não era um sonhador.
Confesso que eu adorava o romantismo que cercava 99% das pregações que usam a história do adolescente invejado e injustiçado como pano de fundo para incentivar os crentes a lutar pelos seus sonhos, mas não é exatamente sobre isso a história do filho de Jacó.
É que aqui, no ocidente, sonho não é somente aquilo que acontece enquanto estamos dormindo. Também usamos essa palavra para descrever ideais, planos para o futuro, metas de grande valor e estima. “Sonhar”, para nós, geralmente soa como algo que desejamos acima da média, distante da realidade ordinária da vida que vivemos, e em alguns casos, de difícil acesso.
A Bíblia fala que José sonhou, e é isso.
Não se tratava de idealizar ou cobiçar uma alta posição política, de autoridade, ou algo do tipo, por mais que alguns de nós sejamos tentados a almejar o poder dessa forma.
Enquanto o menino dormia, Deus usou imagens em sua mente para revelar-lhe verdades sobre seu futuro e de sua família. Naturalmente, José compartilhou a experiência com os seus, e deu no que deu (você conhece a história).
Meu ponto é: nada foi idealizado por José. Tudo aconteceu à revelia de sua vontade, e se formos mais fiéis à narrativa, CONTRA ela.
Vou além: sendo zelosos com as Escrituras, admitiremos que praticamente toda a história de José é uma ode à completa dependência da graça de Deus, que se desenrola ante a sua completa impotência.
Na verdade, ao ler o relato bíblico, pude imaginar o completo desespero de um menino jogado num buraco fundo, ouvindo os próprios irmãos confabularem contra si, planejando matá-lo e, finalmente, decidindo vendê-lo como escravo.
Você consegue imaginar isso?
Tente ao menos por um momento esquecer o fato de que um dia (muitos anos depois de pesado sofrimento) ele se tornou a segunda maior autoridade do Egito, e concentre-se no fato de que José não tinha a menor ideia de como seria o desfecho da novela.
Não consigo encontrar ambição naquele menino indefeso, e acredito piamente que se pudesse ter escolhido, José teria permanecido junto ao seu amado pai, desfrutando da singela vida camponesa que levava com sua família.
Sabemos como a história se desenrolou: na casa de Potifar, o Senhor estava com ele. José serviu com excelência, foi promovido, assediado pela esposa do patrão, mais uma vez injustiçado e, em seguida, preso.
Talvez aquele menino tenha se perguntado por que passava por tanta perseguição e havia tanta desgraça sobre sua vida, enquanto permanecia fiel a Deus apesar de tudo que lhe acontecia.
No cárcere, contudo, mais uma vez a benção do Senhor sobre tudo que ele fazia o destacou, e recebeu do alto sabedoria para interpretar o significado dos sonhos de dois homens ligados ao faraó, que estavam sob seus cuidados.
A Bíblia conta que apesar de acertar a interpretação dos sonhos, José foi esquecido por mais dois longos anos na prisão, até acontecer a oportunidade de estar diante do faraó para interpretar a mensagem do Senhor sobre os 7 anos de fartura, e 7 anos de seca que sobreviriam sobre aquela região.
Nessa ocasião, José ganhou a confiança do faraó e finalmente chegou à posição que lhe fora revelada em sua juventude.
Pelo relato bíblico, aparentemente não dá pra ter certeza de quantos anos se passaram desde a chegada de José ao Egito, até tornar-se a autoridade máxima daquela terra (abaixo apenas do faraó), mas se tenho alguma certeza depois de tudo que li, é a de que José nunca almejou estar naquela posição, ela simplesmente ACONTECEU para ele, no fluxo dos planos que o Senhor tinha para mudar a sorte (ou tirar o azar) do filho mais amado de Israel.
Como eu tenho tanta certeza?
Vá lá, pegue sua Bíblia e releia toda a história. Exerça um pouco de empatia, e sinta toda a dor que ele experimentou ao rever os irmãos- que não o reconheceram.
“José se afastou dos irmãos e começou a chorar. Quando se recompôs, voltou a falar com eles”. (Gn 42.24)
Eu senti toda a mágoa represada por anos dentro daquele coração resiliente, com apenas esse verso. E não foi o único. Em pelo menos mais três ocasiões a Bíblia descreve a dor da experiência traumática de José ante o reencontro com a sua família:
Em Gn 43.30-31, quando ele revê o irmão mais novo, precisa “sair, chorar trancado no quarto e controlar-se” para continuar a falar com ele.
Gn 45.1-2 diz que quando José revelou-se para seus irmãos, ele chorou “tão alto que os egípcios o ouviram, e logo a notícia chegou ao palácio do faraó.”
Eu não sei você, mas pouquíssimas vezes na vida chorei tão alto que alguém poderia me ouvir do cômodo vizinho, quanto mais do lado de fora de casa. Acho que José estava berrando de tanta dor e desgosto.
Vou repetir: José não chorou, ele gritou. No mínimo 10 anos separavam aquele menino invejado, do homem honrado que ele se tornara.
Nessa história, honestamente não consigo ver um José triunfante como os “verdadeiros sonhadores”.
O salmo 126 descreve o que “sonha” como alguém cuja “boca se encheu de riso e sua língua de cânticos”. Não há no salmo nenhuma menção a choros descontrolados e berros.
José, pelo contrário, é retratado como alguém de luto.
O ápice da narrativa se dá no encontro com seu amado pai:
“Apresentou-se, lançou-se-lhe ao pescoço e chorou assim longo tempo.” Gn 46.29
Quanta saudade havia ali?
Quanta tristeza por tantos anos de convivência perdidos?
Quanto lamento de uma alma despedaçada pela traição e corroída pela solidão?
Quão desgastado pela injustiça e todas as humilhações que havia sofrido?
O coração de José, no entanto, era uma jóia preciosa que continha dor, sim, porém
muita generosidade. Não havia ali nenhum traço da sede de vingança, nenhuma altivez ou arrogância.
Havia DOR.
E também uma fome de reparação, de conexão, de restituição.
José não somente perdoou-os, mas abençoou sua casa de um modo inimaginável para alguns, e inaceitável para outros. Trouxe-os para perto de si, cuidou de todos, salvou toda uma geração da morte.
Há quem diga que Deus fez tudo a José propositalmente, com o fim de preservar a linhagem de Judá (que nos traria Jesus), livrando-a da morte que viria como a fome nos anos de seca.
Não consigo, entretanto, encaixar esse modus operandi no caráter do Pai que nos enviou o Cristo. Acredito firmemente que o Senhor que fez cair o maná sobre seu povo no deserto, certamente encontraria outras formas de alimentá-lo durante uma seca, mas muitos não estão preparados para essa conversa, então deixemos para outra ocasião.
O que pra mim, afinal, é inquestionável, é que o que guiou José até a sua bem aventurança, não foi seu caráter “sonhador”, mas a sua INTEGRIDADE.
Aquele menino entregou todo o seu coração em confiança àquele que era o seu Deus, e assim permaneceu, desde a cisterna, passando pela casa de Potifar, prisão e palácio do faraó, até o “lugar” de encarar os irmãos que o maltrataram de forma tão cruel e desumana.
A despeito de tudo e de todos, José foi fiel àquele que é fiel em toda a sua palavra para sempre.
Ele guardou seu coração, manteve seus princípios e agiu com a benignidade digna do próprio Deus, aquele tipo que Jesus demonstrou no madeiro quando orou, “Pai, perdoa-os, pois não sabem o que fazem”.
José tornou-se, pra mim, o maior de todo o Gênesis. Hoje eu só consigo pensar que a insistência da Bíblia em dizer que “o Senhor era com ele”, quer nos ensinar que a melhor forma de reagir ao mal sempre será mantendo-se fiel à fonte de todo o bem, o Pai das luzes.
Como eu disse, José não era um sonhador, ele era “apenas” um coração completamente rendido ao Senhor.